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Afeto Rígido / 2018

 

Este trabalho fala sobre a minha avó materna. Na verdade, usa apenas fragmentos da história dela, a partir de minha perspectiva, para falar sobre algo maior: a mulher. O lugar imposto à mulher, as relações da mulher com o mundo, com uma cidade do interior, com instituições, com a rua, com o público, o privado, com a loucura, com o sufocamento, a repressão, a opressão. O peso das vivências e experiências de nossas avós é passado, de formas mais ou menos diretas, para as nossas mães e para nós, filhas. Tudo isso reverbera, perpassa em nós e preserva feridas um tanto abertas. Ou mantém cicatrizes. O fato (ou, melhor, o que era tomado como fato) de minha avó ser considerada “louca” sempre foi escondido de mim, falado aos cochichos, apenas sussurrado. Somente após o seu falecimento, e eu já adulta, que tive maior acesso ao assunto. Pesquisei arquivos sobre suas internações e, através de registros do Hospital Psiquiátrico São Pedro, de Porto Alegre, me deparei com os depoimentos que provam coisas como: ela era sempre internada pelo meu avô, de forma involuntária; os motivos da internação tinham relação com ciúme, afeto rígido, não fazer direito o trabalho doméstico, não se dar bem com pessoas da família; os laudos sempre a descreviam como “lúcida, calma e orientada” e, no máximo, visivelmente deprimida. Sobre as tentativas de suicídio, as informações me vieram de forma desconexa e ambígua. Os abortos não foram poucos, pelo jeito. Mas o local onde ela nasceu e viveu a vida inteira, esse eu conheço bem. Eu também nasci e me criei no mesmo local, no interior do Rio Grande do Sul, na região das Missões. A fazenda da família é o cenário principal das fotografias. A terra vermelha, que carrega tanto sangue e sufocamento. Um local totalmente imerso nas tradições gauchescas, onde sempre esteve em voga a desvalorização da mulher - assim como a desvalorização da fêmea de qualquer espécie. Eu senti na pele, embora em proporções bem menores, o que ela passou. E carrego isso comigo. Alguns questionamentos que ficam: quem tem o poder de definir a vida da mulher, definir o que ela é, o que ela sente? Dentro de quais critérios, em um mundo feito por e para homens? Quem estava realmente tentando compreender aquela mulher, jogada de um canto para outro, sufocada por uma sociedade extremamente machista?

*Vídeo feito com apoio do Prêmio Funarte RespirArte, 2020

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